De uma história que promovia o amor a declarações transfóbicas: em tempos de discursos de ódio disfarçados de opinião, ignorar a autora é mesmo opção?
Nas últimas semanas, J.K. Rowling voltou a estampar manchetes. Por conta de uma nova publicação? Uma premiação? Nada disso. A autora de Harry Potter se destacou novamente por seu posicionamento transfóbico, agora ao comemorar, nas redes sociais, a decisão da Suprema Corte britânica, que definiu legalmente o conceito de mulher com base no sexo biológico. A comemoração reacendeu um debate espinhoso: é possível separar a autora de sua obra?
A decisão judicial foi um duro golpe para as mulheres trans britânicas, que há mais de 15 anos lutam por reconhecimento legal e proteção sob a Lei de Igualdade — uma legislação que combate a discriminação de gênero e incentiva a inclusão feminina no mercado de trabalho.
O caso foi levado à Suprema Corte por um grupo chamado For Women Scotland, que se opôs à tentativa de estender os direitos da lei às pessoas trans. Em seu perfil no X (antigo Twitter), Rowling celebrou:
“Foram necessárias três mulheres escocesas extraordinárias e tenazes para que este caso fosse ouvido pela Suprema Corte e, ao vencer, protegeram os direitos das mulheres e meninas em todo o Reino Unido."
It took three extraordinary, tenacious Scottish women with an army behind them to get this case heard by the Supreme Court and, in winning, they’ve protected the rights of women and girls across the UK. @ForWomenScot, I’m so proud to know you 🏴💜🏴💚🏴🤍🏴 https://t.co/JEvcScVVGS
— J.K. Rowling (@jk_rowling) April 16, 2025
Logo em seguida, postou uma foto segurando um copo de uísque e um charuto, com a legenda: "Adoro quando um plano dá certo". Confira:
I love it when a plan comes together.#SupremeCourt#WomensRightspic.twitter.com/agOkWmhPgb
— J.K. Rowling (@jk_rowling) April 16, 2025
Desde 2020, a autora tem se posicionado cada vez mais abertamente contra os direitos da população trans. E, com isso, o velho dilema da separação entre criador e criatura ganha um novo capítulo. Como lidar com a complexidade de uma autora, que criou um universo que ensinou a milhões sobre amizade, amor e coragem, e que, agora, ataca publicamente um grupo historicamente marginalizado?
Essa não é uma questão exclusiva a Rowling. No Brasil, Monteiro Lobato é outro nome frequentemente citado nesse dilema. Responsável por obras da literatura infantil, como Sítio do Picapau Amarelo, também é criticado por passagens racistas em seus textos e por cartas em que expressa apoio ao regime eugenista.
J.R.R. Tolkien, criador de O Senhor dos Anéis, também não escapa ileso: muitos apontam traços racializados e problemáticos nas descrições de suas histórias. Os heróis de pele clara e os vilões (como os orcs) frequentemente associados a características físicas “deformadas” e pele escura.
Essas marcas não aparecem por acaso. Tolkien viveu durante o auge do apartheid na África do Sul e da colonização europeia na África e na Ásia. Mesmo que inconscientes, essas influências transparecem nas metáforas e imaginários.
A lista de casos parecidos continua: Kanye West, Woody Allen, Roman Polanski, Johnny Depp... Em todos eles, o talento artístico vem acompanhado de comportamentos ou discursos que desafiam o consumo acrítico de suas obras.
Nesse ponto, vale lembrar de um personagem icônico: Victor Frankenstein. No clássico de Mary Shelley, o cientista decide criar vida a partir de cadáveres — e rejeita a criatura assim que a vê. Rejeitado e marginalizado, o monstro se torna uma figura trágica e perigosa, justamente porque seu criador se recusa a assumir qualquer responsabilidade.
A história é frequentemente lida como um aviso sobre os limites da ciência, mas também pode ser interpretada como uma metáfora sobre a relação entre criador e criação. Tal como Shelley nos lembra: quem cria algo, seja uma criatura ou uma obra cultural, compartilha com ela parte de sua visão de mundo. Afinal, as obras não existem isoladas — elas têm origem, intenção e impacto.
Esse vínculo entre autor, obra e contexto é abordado por duas teorias críticas fundamentais. O ensaio A Morte do Autor, de Roland Barthes, afirma que o sentido de um texto não pertence mais ao autor depois que ele é publicado. A interpretação passa a ser uma construção do leitor. Com isso, ele propõe a libertação da leitura das intenções do criador, permitindo que o texto exista por si só. Mas isso não significa ignorar o criador — apenas descentralizá-lo — o que é diferente de eximir sua responsabilidade.
Já a corrente crítica do New Historicism, surgida nos anos 1980 com autores como Stephen Greenblatt, o contexto histórico, social, político e biográfico do autor é fundamental para entender as camadas e significados da obra. Ou seja, para entender de verdade uma obra, é preciso conhecer o seu tempo, seu autor e as estruturas de poder que a atravessam.
Quando olhamos por essa lente para a obra de Rowling, por exemplo, vemos como seus posicionamentos pessoais não são desvinculados de suas histórias — ao contrário, eles atravessam personagens, vilões e representações simbólicas.
Em Sangue Revolto (2020), livro assinado pela autora sob o pseudônimo Robert Galbraith, o vilão é um serial killer que se veste de mulher para assassinar mulheres. Um detalhe incômodo, principalmente vindo de uma autora que já expressou repetidamente seu desprezo por identidades trans. Coincidência? Ou reflexo de estereótipos transfóbicos de quem o criou?
A resposta a essa pergunta exige que consideremos não só o que está nas páginas dos livros, mas o impacto real que essas páginas podem ter, porque obras de ficção não são apenas entretenimento — elas participam ativamente da formação de valores, crenças e imaginários sociais. E, nesse ponto, a cultura deixa de ser algo neutro para se tornar uma arena de disputa política.
O cientista político Joseph Nye, em seu livro Soft Power, defende que a cultura é uma das ferramentas de influência global. Segundo ele, a capacidade de um país (ou grupo) moldar preferências e comportamentos através de bens culturais é uma forma sutil, mas poderosa, de exercer poder. Portanto, filmes, livros e músicas não apenas entretêm: eles criam símbolos, espalham valores e moldam percepções.
Não se trata disso. Talvez a resposta esteja na crítica, não na censura. É preciso reconhecer que, por mais confortável que pareça, a separação entre criador e obra é uma ficção conveniente — e muitas vezes, nociva. Se artistas têm o poder de influenciar o mundo com suas narrativas, também têm a responsabilidade pelo que colocam no mundo. E nós, como público, temos o direito — e o dever — de decidir o que vamos consumir.
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