Candidato do Brasil a uma vaga no Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025 estreia nos cinemas brasileiros em 7 de novembro
Publicado em 02/11/2024, às 15h00
A ditadura militar foi um dos capítulos mais tristes da história brasileira e o nosso cinema sempre tratou de representar o período, marcado pelo autoritarismo e a repressão, das mais variadas formas, seja em formato documental, a exemplo de Cabra Marcado Para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho, ou em ficções baseadas em fatos, como em Marighella (2019), de Wagner Moura.
Centrado no efeito do poder aterrorizante, onipresente e sem rosto definido dos militares, Ainda Estou Aqui, novo trabalho de Walter Salles (Central do Brasil) — que chega aos cinemas brasileiros no próximo dia 7 de novembro e é baseado na história real da família do escritor Marcelo Rubens Paiva —, nos convida a abrir um álbum de recordações manchado pelos horrores do período.
Como uma ironia triste, Ainda Estou Aqui começa com uma reunião quente e calorosa entre familiares e amigos. Alguns momentos dão pistas de que algo não está correto, mas o momento é afetuoso e amistoso, uma pulsação de vida e diálogo. A cena da fotografia em família, que estampa o pôster, será ressignificada até o fim do longa, mas não sem antes ser sucedida por um ponto de virada claro, que ocorre quando Rubens Paiva (Selton Mello, O Auto da Compadecida) é levado para interrogatório para nunca mais ser visto.
No lar, ficam Eunice Paiva, interpretada por Fernanda Torres (Terra Estrangeira), e seus cinco filhos, entre eles um ainda jovem Marcelo Rubens Paiva, que viria a se tornar o autor do livro homônimo utilizado para desenvolver o roteiro escrito por pelo próprio Walter Salles em conjunto com Murilo Hauser e Heitor Lorega — dupla vencedora do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Veneza.
Com a tragédia da perda do patriarca, pai e marido, há uma quebra naquele mundo idílico dos Paiva. A casa se fecha, representando a chegada da opressão. A presença da música, tão vibrante no início, dá lugar ao silêncio e à angústia, exigindo uma nova abordagem na filmagem, com câmeras mais fixas e espaços escuros, que refletem a tensão do período.
Vale destacar a forma com que os agentes da ditadura são retratados. Em vez de serem mostrados como brutais, Walter Salles opta por apresentá-los como seres complexos, tornando as cenas de violência ainda mais perturbadoras. Não que Ainda Estou Aquiexplore a violência física; ela é trabalhada de forma mais psicológica, ganhando ares de um terror angustiante. Diante da presença constante deste inimigo “amigável” na casa, resta a Eunice represar sentimentos e esconder a verdade dos filhos.
Fernanda Torres está no auge de sua carreira em uma atuação arrebatadora e assustadoramente emocionante. Através de olhares e gestos, a atriz consegue transmitir sentimentos e dor, além de viver momentos de dar calafrios. Suas cenas no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) são sufocantes e revoltantes. Os sons ao fundo lembram algo já feito em Zona de Interesse, longa vencedor do Oscar de Melhor Som no Oscar 2024, em que nós sabemos o que acontece por ali, embora nunca sejamos testemunha ocular daquele terror.
Apesar da história trágica, o longa de Salles não força uma resposta emocional do público; ao contrário, a contenção nas atuações e na direção cria uma cumplicidade com os personagens, permitindo que o público sinta a arbitrariedade da vida e do poder.
O filme também se destaca por sua abordagem única, que contrasta com a fragmentação da narrativa típica das produções modernas. Em tempos de streaming e conteúdo rápido, Ainda Estou Aqui propõe uma experiência cinematográfica que valoriza o tempo e a profundidade, permitindo que o público se conecte verdadeiramente com os personagens e suas histórias. É realmente como se estivéssemos sentados diante de algum membro dos Paiva que está nos contando essa história manchada pela ditadura militar.
No entanto, Ainda Estou Aqui não se limita a contar a história de Eunice ou o desaparecimento de Rubens, refletindo também sobre uma era marcada pela luta e a busca por um Brasil mais justo. Em suma, o longa é mais do que uma obra cinematográfica sobre um período sombrio da história brasileira, é uma reflexão profunda sobre a dor, a perda e a resiliência humana diante da opressão.
Walter Salles, com sua sensibilidade característica já conhecida por nós brasileiros, transforma a história real da família Paiva em um retrato íntimo e, ao mesmo tempo, universal, resgatando memórias dolorosas da ditadura militar e reiterando a importância de não esquecermos os erros do passado, propondo que a dor das vítimas de regimes autoritários seja compreendida e respeitada, evocando ainda a necessidade de se lutar pela preservação da democracia de forma que essa mancha que, infelizmente, nunca irá sumir, ao menos nunca mais ganhe novas doses de tinta.
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